sábado, 24 de março de 2012

Um segredo do Chico Anysio


Certa vez, entrevistei o Chico. Foi durante a preparação do meu livro "Uma Questão de Tempo". Ele, no auge do sucesso, generosamente abriu sua agenda para uma conversa, em seu apartamento, sem qualquer pressa, já dando provas de que era um Mestre também do seu próprio tempo.

Minha maior curiosidade era entender qual o segredo por trás de sua incrível capacidade de fazer - com aquele brilhantismo - tantas atividades diferentes e dar conta daquele verdadeiro exército de personagens.

É claro que, vindo de um gênio como ele, seu segredo era fácil de entender (apesar de muito difícil de praticar).
- "Muito simples", me explicou. "Faço uma coisa de cada vez. Quando estou pintando, pinto; quando estou escrevendo, escrevo; quando estou compondo, componho; quando roteirizo, roteirizo: quando estou fazendo um personagem, me ocupo exclusivamente dele".

Ou seja, Chico estava sempre presente , de maneira plena- na atividade a que se propunha a fazer a cada momento, 100% focado, sem nunca misturar as coisas. Não ficava mentalmente especulando sobre o que tinha que fazer depois, nem se assombrava com o que vinha do passado.

Bem humorado e irreverente, me presenteou com um par de pequenos - mas poderosíssimos - exemplos, misturando a voz de um personagem com a fala típica de outro.

"Sacou o perigo? arrematou, com um olhar parecido com o da foto aí em cima. 

Foi uma lição que nunca mais esqueci. Ao rememorar esta passagem, ontem, fiquei ainda mais triste com a notícia de sua partida.  Só queria, então, dizer, mais uma vez: 

Obrigado por tudo, Chico!!!!   


sábado, 17 de março de 2012

VIDAS SUSTENTÁVEIS


Por Rosiska Darcy de Oliveira
Reproduzido do jornal O Globo - 17/03/10


O tempo é o meio ambiente impalpável onde nossa vida evolui. A relação com o tempo é, nesse sentido, uma relação ecológica, marcada no mundo contemporâneo pela poluição das horas. Todos temos relógios, mas ninguém tem tempo. Essa constatação levou o filósofo Michel Serres a propor que renunciássemos a comprar relógios e guardássemos o tempo. Afinal, na vida de cada um, o tempo é um recurso não renovável.

O paradigma da onipotência e da falta de limite, o pressuposto de energias inesgotáveis que destruiu e continua destruindo os equilíbrios da Terra, contaminou o cotidiano das pessoas e se manifesta na multiplicidade de vidas que transbordam das 24 horas do dia: trabalho, casa, viagens. Some-se a isso a bulimia da informação e o frenesi dos relacionamentos no espaço virtual, segundas vidas que permeiam o real. Mesmo se a duração da vida humana é cada vez mais longa as horas são percebidas como cada vez mais curtas.

O dia a dia nas grandes metrópoles tornou-se insustentável como modelo de consumo e também como escolhas equivocadas, que não se sustentam em se tratando de qualidade de vida. As horas passadas em engarrafamentos de pesadelo são momentos privilegiadospara pensar em como desatar os nós do tempo das cidades. Na Itália, a lei obriga cidades com mais de cem mil habitantes a criar uma Secretaria do Tempo para estudar essa variável, decisiva na relação das pessoas com o meio urbano. Resta ainda a relação ao trabalho e à família.

A concorrência no mercado global exerce uma pressão inclemente sobre as empresas que, por sua vez, pressionam quem trabalha, fixando metas e além-metas, exigindo prontidão, ubiquidade e nomadismo. Cada um é o contramestre de si mesmo, tanto mais severo quanto mais competitivo. No mundo do trabalho, o que é urgente prima sobre o importante. Nesse reino da urgência, o estresse é a regra, e a somatização, o sintoma.

Família e trabalho se tornam rivais, lealdades conflitantes. Esse foi o leitmotiv das incontáveis comemorações do Dia Internacional da Mulher. Como conciliar carreira e vida privada? A pergunta vale para mulheres e homens que trabalham a tempo integral. Crianças e idosos terão certamente muito a dizer sobre seus pais e filhos que nunca têm tempo para eles. Um sentimento de culpa, permanente, habita os jovens adultos, com duas faces, uma voltada para a família, outra para a empresa. Homenagear as mulheres é colocar na pauta da sociedade brasileira, como um valor, o direito — para mulheres e homens — a dispor de tempo para a vida privada. Em respeito à infinidade de gestos que, em todos os tempos, elas fizeram para transformar cada um de nós em seres humanos melhores do que os selvagens que somos ao nascer. Gestos que nunca mereceram registro nos livros de história da civilização ainda que tenham sido a grande aventura educativa da espécie.

As mulheres entraram no mundo do trabalho pela porta dos fundos. Transgressoras de uma lei não escrita que lhes proibia o acesso, aceitaram condições leoninas. Acataram uma dupla mensagem: aqui, trabalhe como um homem qualquer; fora daqui, continue a ser a mulher que sempre foi. Temendo a desqualificação — a família como um “defeito” feminino — tentaram dar respostas biográficas a contradições sistêmicas. O tempo elástico tornou-se insustentável.

A vida privada foi ocultada enquanto desafio social, sem que se levasse em conta sua contribuição à sociedade De difícil solução, a questão foi devolvida à intimidade dos casais. Essa ocultação, angústia diária de homens e mulheres, é um dos núcleos problemáticos da contemporaneidade.

Em tempos de Rio+20, quando a palavra sustentabilidade está em todas as bocas, ainda que definida como na fábula dos cegos e do elefante, seria oportuno criar o Clube do Rio. A exemplo do Clube de Roma que, há quarenta anos, numa reviravolta epistemológica introduziu a polêmica noção de limite ao crescimento, retomada em recente e assertivo artigo de André Lara Resende, o Clube do Rio reuniria inteligências criativas e ousadas, hoje espalhadas pelo mundo. Atento às dimensões insustentáveis do cotidiano, buscaria o equilíbrio entre o uso do tempo e as energias humanas, mobilizando ciência e imaginação para gerar uma ecologia do tempo a serviço de vidas e cidades sustentáveis.

No futuro das cidades sustentáveis tempo não será dinheiro. Nada nos condena a transformarmo-nos em um sub-Estados Unidos.

Mais uma bela oportunidade para o Rio de Janeiro: ser a matriz de um conceito de sustentabilidade balizado pelo bem viver.

 ROSISKA DARCY DE OLIVEIRA é escritora. E-mail: rosiska.darcy@uol.com.br